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Banda larga e o abandono do regime público

Por Gabriel Brito, no sítio Correio da Cidadania:

Após alguns meses de discussões nos altos escalões das telecomunicações, o governo federal anunciou no último dia 30 de junho como se dará seu Plano Nacional de Banda Larga. Com vistas a promover uma inédita inclusão digital dos brasileiros, aumentando a qualidade de conexão oferecida ao consumidor e atingindo 70% da população até 2015, o governo trouxe a público o acordo selado com as grandes teles do setor, que exercerão, dentro de suas leis de mercado, a expansão.



Para analisar um dos mais estratégicos assuntos nacionais, o Correio da Cidadania entrevistou Marcos Dantas, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ. Sempre envolvido nos debates do setor, inclusive com acesso a membros do governo, Dantas acredita que o grande ponto falho no PNBL foi “o abandono definitivo do princípio de regime público”.

Isso porque ele ressalta que, tal como foi concebido, o plano prevê apenas expansão, e não a universalização do acesso à internet rápida, exigência de movimentos e militantes da democratização das comunicações. Para explicar as razões de tal opção, ele lembra que na hora da negociação “o capital fala mais alto”, de modo que somente o governo e seus representantes podem explicar por que se abdicou do regime público para banda larga.

Dessa forma, Dantas faz um paralelo com outras políticas sociais, concluindo que o plano nada mais é do que a repetição da filosofia de outros programas do governo, “na linha de políticas compensatórias”. Ao saber que o povo desconhece completamente as atuais possibilidades de progresso e seus direitos, afirma que o governo se aproveita para fazer concessões limitadas, suficientes, no entanto, para contentar o público – e no final das contas, o mercado.

A entrevista completa com Marcos Dantas pode ser lida a seguir.

O que pensa do acordo do governo federal com as teles para expansão da banda larga, anunciado na última semana, que visa levar o acesso a uma internet mais rápida a pelo menos 70% da população nos próximos 4 anos?

Acho que o governo perdeu uma boa oportunidade de remontar, reestruturar, uma política de comunicações a longo prazo, porque estava no meio de uma negociação contratual e, dessa forma, tinha um leque de possibilidades, sobretudo de colocar ou redefinir a natureza do regime público das telecomunicações. E não fez isso.

E o que comentar a respeito do termo de compromisso assinado com as teles, que na verdade serve mais é para desobrigá-las de atender aos compromissos do plano, e o acordo fechado para o cumprimento do Plano Geral de Metas e Universalização (PGMU) III?

É aquilo... Qualquer coisa é melhor que nada. A política do governo é expandir o acesso à comunicação de alta velocidade no país, o que não se confunde com universalizar. Nesse sentido, o governo parte de um princípio de que hoje a grande maioria da população tem um acesso muito precário à alta velocidade, ou simplesmente tem acesso à internet em baixa velocidade.

Portanto, passar de um patamar de baixa velocidade para um de alta, mesmo que limitada a 1 Mbps (megabit por segundo), já é um avanço. Esse é o argumento do governo. E penso que é um argumento que se confunde com a expansão do celular, ao qual toda a população tem acesso, mas é o famoso ‘pai de santo’, pois só atende chamada. O pessoal do movimento negro não gosta dessa expressão, porém, ela é absolutamente popular. Tem-se o celular, mas só se usa pela metade. E isso é melhor que nada.

Entretanto, não deixa de ser uma forma de restrição, de apartação, uma maneira de aceitar as disparidades do país. E a rigor nada é feito contra isso, até porque seria preciso mudar o próprio conceito, passando as telecomunicações do regime privado para um conceito de regime público, com as obrigações de regime público nos termos da lei.

Esse foi o único grande problema do acordo em sua opinião?

Sim, foi o grande problema.

E por que o governo perdeu essa chance de estabelecer o regime público no acesso à banda larga?

Aí só perguntando para o governo...

Como analisa o espaço oferecido à sociedade para participar dessas discussões, levando-se em conta os recentes movimentos de reivindicação por democratização das comunicações, entre outras coisas?

Vamos começar anotando que no atual governo Dilma está havendo mais diálogo com a sociedade. Temos que reconhecer isso, e sou testemunha. Coisa que não havia no governo Lula no Ministério das Comunicações (MiniCom). Nesse período, não houve nenhum diálogo com a sociedade não empresarial, somente com os empresários e ninguém mais. Já nos sete meses de governo Dilma já houve vários encontros em Brasília com representantes da classe não empresarial. O governo escutou mais de uma vez quais são as reivindicações e inclusive acena com a possibilidade de construção de uma mesa de diálogo na Secretaria Geral da Presidência da República. Esses são fatos positivos.

No entanto, o concreto é que na hora da negociação objetiva fala mais alto o peso do capital. Isso, evidentemente, tem a ver com a realidade político-econômica brasileira, mesmo que não gostemos dela. Voltando ao exemplo do celular, ainda que o cara tenha o aparelho pela metade, ele fica satisfeito.

O conjunto da população tem um nível político tão baixo que não percebe esses problemas todos. Fala “ótimo, consegui isso, melhor que nada”. O nível de carência é tal que o mínimo já é capaz de gerar uma grande satisfação. O cara tem uma internet de 56k e passa a ter 1 mega e acha fantástico! E quem está na política pragmática, direta, tendo que gerenciar todos esses aspectos, acaba achando que está promovendo uma grande realização.

É mais uma política compensatória. Na mesma linha das políticas compensatórias postas em práticas nos últimos oito, nove anos. Eu diria que é uma solução absolutamente coerente com tudo que foi a política do governo nesses anos. Com um detalhe, nesse caso interessante: ao contrário de outras políticas compensatórias, nas quais os atores envolvidos, beneficiados, costumam bater palmas, nas comunicações está ocorrendo uma interessante unidade de todos os envolvidos – do ponto de vista da sociedade civil não empresarial – em torno do regime público. Como todos compraram o discurso da defesa, da manutenção, do fortalecimento do regime público, há uma unidade crítica ao governo, que não consegue o apoio a esse projeto em tal campo da sociedade, como tinha conseguido em outros projetos, como o Bolsa-família, o Prouni etc.

A advogada Flávia Lefèvre, da Associação de Defesa do Consumidor, Proteste, considera o PGMU (Plano Geral de Metas e Universalização) III o símbolo do sepultamento do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). Ao invés de diminuir as tarifas da telefonia e expandir os orelhões e infraestrutura na área rural, a resolução aprovada pelo Palácio abre brechas para utilizar recursos públicos no serviço privado da banda larga. Você concorda com essa afirmação?

Não. Não concordo com essa afirmação porque eu diria que esse plano, na verdade, é um aperfeiçoamento do Plano Nacional de Banda Larga conforme ele já estava sendo anteriormente formulado. Na minha avaliação inicial já tinha críticas à formulação original. Creio que a filosofia básica do plano, que como falei é de política compensatória, já estava na formulação original do governo Lula, e agora fica mantida.

Na verdade, com aquela história de Telebrás o governo Lula colocou o bode na sala. E a Dilma tirou, fazendo as teles assumirem um conjunto de compromissos que num primeiro momento elas não estavam predispostas. Fizeram as teles se mexer, é preciso ressaltar isso. Num primeiro momento, elas estavam numa posição muito cômoda, e depois tiveram de fazer uma proposta de massificação – que não se confunde com universalização. Elas fizeram a proposta e o governo aceitou, argumentando que ele, governo, tem os instrumentos e a disposição para fiscalizar o cumprimento do compromisso. É isso que ficou posto. As teles assumiram o compromisso e o governo vai tomar as medidas necessárias para que se cumpra. E a verdade é que o plano era isso: botar o bode na sala e fazer as teles se mexerem.

Desde o início, início mesmo, não podemos esquecer que havia um conflito dentro do governo entre duas posições: uma achava que a Telebrás deveria ser uma empresa reguladora de mercado; já a outra queria a Telebrás dentro do mercado, disputando-o. A segunda posição foi derrotada. A Telebrás ficou como espada de Dâmocles na cabeça das teles, mas quem executará os planos serão as teles.

Portanto, não há nenhuma mudança de filosofia. Por isso discordo do discurso da Flavia e outros, um tanto quanto terrorista. Não vejo assim. Não houve mudança de filosofia, apenas um arredondamento da proposta, dentro da mesma filosofia. Eu já tinha tido a oportunidade de falar com Rogério Santana, o Cezar Alvarez, dizendo que via problemas na proposta, que continuo vendo agora. E o grande problema é: o abandono definitivo do princípio de regime público.

Dessa forma, você discorda bastante do papel que ficou reservado a Telebrás?

A rigor, o mais importante seria manter o princípio do regime público. Eu não me sinto viúva da Telebrás.

Mas ela não tinha condições de protagonizar essa expansão, até pelos seus milhares de quilômetros de cabos de fibra ótica?

Acho que não. Particularmente, penso que não. Tem setores que discordam de mim, mas pelo jeito que estão hoje as telecomunicações no Brasil e no mundo uma empresa estatal não tem condições competitivas, tal como está o mercado. Deixariam pra Telebrás o mesmo papel das escolas públicas do Brasil: o de atender a pobreza. E quando você tem um serviço só para atender a pobreza, atende pobremente, como a escola pública, a saúde pública, o transporte coletivo... Quem tem renda continuaria usando as redes privadas, e quem não tem usaria a rede meia-bomba. Como em todos os setores essenciais. É um fator muito perverso. Desde o início manifestei esse tipo de posição.

A Telebrás inclusive não teria muita condição de obter receitas. Ninguém jamais mostrou qual era o plano de viabilidade da Telebrás. Apenas o Santana falava que tinha um plano e que em cinco anos ela estaria viável. Mas ninguém nunca viu esse plano, pois ele efetivamente dependia de receitas do governo sobre fatores em que nem sempre o governo tem total controle. O governo jamais teria controle se, por exemplo, a justiça, o STF, fosse usar a rede da Telebrás para suas comunicações. Ou a Petrobras. Não tem controle disso. Assim, só poderíamos ter uma solução realmente pobre para pobres. E continuará assim, é verdade...

As duas únicas finalidades que poderiam existir na Telebrás – o que passaria por um projeto estratégico, sempre em falta – seriam: se tornar uma grande intranet do Estado, com a rede da Eletronet, com todas as comunicações relativas ao Estado numa rede fechada. Do ponto de vista da segurança do Estado brasileiro, isso seria excepcional. Ela poderia cumprir tal função. Não sei se tem alguém pensando nisso.

Até porque falta compreensão do quão estratégico é o setor das telecomunicações para qualquer país e aparato de governo.

Exatamente. Assim, teríamos toda a comunicação do poder público, e-mails entre ministros etc., dentro de uma rede fechada do Estado brasileiro.

Dificultaria a vida dos hackers, que tem conseguido invadir essas comunicações governamentais...

Isso mesmo. Dos hackers que a imprensa publica e dos outros também, que não ficamos sabendo, mas existem... Aqueles do império... Sabem tudo que se passa nas redes do governo. Esse seria um ponto.

O outro ponto que a Telebrás poderia cumprir seria o de se pensar num projeto de expansão da banda larga parecido com o da Austrália. Tem-se uma infra-estrutura pública estatal para todo mundo. A infra-estrutura, a estrada de rodagem, a estrutura física seria uma só, do Estado, da melhor qualidade, em cima da qual rodariam todas as empresas privadas. Seria uma hipótese e seria preciso colocar todas as empresas privadas sobre essa estrutura, com iguais condições de qualidade para todo mundo.

Mas aí se esbarra exatamente no projeto estratégico, pois se criaria outro projeto e mudaria a estrutura do setor. Por outro lado, colocar a Telebrás pra concorrer com empresa privada e concorrer nos grotões é algo em que não vejo lógica nenhuma.

O modelo de inclusão digital que o Brasil adota é comum mundo afora, especialmente nos países que já atingiram um alto grau de universalização de internet rápida?

Não. Tem um problema que diferencia o Brasil: é um país de grande território e população. Tirando, mais ou menos, a região da Amazônia, que vem sendo povoada hoje em dia, todas as demais regiões são povoadas no mínimo de forma razoável. Isso não é o caso dos EUA, que é um país de grande território, população e renda. Não é o caso de Austrália e Canadá, com grandes territórios, mas população concentrada. E muito menos é como Finlândia, Coréia do Sul, casos sempre citados, que são países mínimos, onde puxando um cabo de um metro já se cobre o país inteiro. Tem opções interessantes na Finlândia, mas o país é pequeno, com população menor que a cidade de São Paulo. Assim é fácil.

Dessa forma, deve-se encontrar para o Brasil soluções que contemplem nossas peculiaridades: a grande população, território, a disparidade de renda, tudo isso. Quando se fala em mercado no Brasil estamos falando de 400 municípios, que concentram 70% do PIB. Tais fatores têm de ser considerados. Uma solução estratégica para o Brasil, portanto, realmente passaria por uma reciclagem, uma nova etapa, do projeto de regime público. E teríamos o fim do STFC (Serviço de Telefonia Fixa Comutada), que vai acabar de morte morrida. Ano a ano diminui o número de telefones fixos no país. Isso acontece no mundo inteiro, não só no Brasil. Quando terminarem os contratos de concessão, lá pra 2025, é muito provável ou ao menos não será surpresa se já não existir telefone fixo e os contratos durarem mais que o próprio serviço. Isso não será surpresa.

Portanto, era o momento de relançar, reconstruir e redefinir o regime público em cima da banda larga, mesmo que com as atuais concessionárias, ou ainda fazendo uma remodelagem geral e uma nova rodada de licitações. Poderíamos discutir, mas a filosofia tem de ser a reconstrução do regime público para a nova etapa das comunicações.

Isso incluiria mais investimentos também no parque tecnológico do país?

Poderia incluir também, considerando que nessa nova etapa de expansão as empresas tivessem de investir em tecnologia própria, obrigatoriedade de comprar da indústria nacional... Realmente é outro detalhe a ser lembrado. E o governo perdeu a oportunidade de pensar estrategicamente. Já tive a oportunidade de dizer isso a autoridades do governo. É início de governo, a presidente tem um tremendo cacife político e também era um momento de renegociação de contratos, quando tudo fica muito aberto e se renegociava o PGMU. Era um bom momento para o governo chegar e dizer “vamos repactuar essa coisa”. Mas não quis fazer, por razões que só perguntando ao governo pra saber.

Como analisa o atual papel da Anatel? Está faltando uma melhor separação de funções entre ela e o Ministério das Comunicações? Não caberia à Anatel somente fiscalizar o setor e reservar ao Ministério o papel de elaborar políticas públicas para a área?

Acho que não está faltando separar melhor as funções, mas é outro ponto importante. Pelo que tenho percebido, o Ministério das Comunicações está cumprindo seu papel de formulação política. Vamos dar esse crédito, pois é o caminho certo. Ele está cumprindo seu papel nesse sentido. Ao que me parece, a Anatel está um pouco à margem da discussão, ou no máximo subsidiando elementos da discussão. Mas quem tem feito a formulação é o MiniCom, tal como era de se esperar com a nomeação do Paulo Bernardo, que não é um quadro secundário, bem pelo contrário. Tal como se podia esperar com sua nomeação para o Ministério, ele está no comando do processo político. E a Anatel colocada no seu devido lugar.

Falando em Paulo Bernardo, você considera um avanço sua entrada no Ministério em relação ao ocupante anterior da pasta, Helio Costa?

Sob o aspecto da importância que o Ministério das Comunicações passa a ter no governo Dilma, sem dúvida é positivo. Saber que no MiniCom está um dos principais quadros do governo Dilma é algo claramente positivo para o setor de comunicações. Mas depende também de qual é o projeto do governo para o setor. E agora estamos começando a ver quais são os planos. De toda forma, sem dúvida alguma esse governo lhe deu uma dimensão que jamais foi dada no governo Lula.

Isso aumentaria a margem de manobra do governo para promover alguns avanços em favor do consumidor futuramente?

Eu gostaria, porém, o problema é que depois de assinar contrato fica mais complicado. Por isso que o momento era agora. Mas agora essa margem diminuiu.

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